Como as desigualdades da sociedade civil moldam os imperativos do Estado

O marxismo é uma teoria centrada na sociedade. Por isso, concentrou-se em como as desigualdades da sociedade civil moldam os imperativos do Estado. O desenvolvimento do capitalismo industrial, e não o comportamento dos estados, é identificado como a principal força motriz por trás da mudança social. As ações políticas dos indivíduos são entendidas em termos de sua relação com o modo de produção capitalista, como membros de uma classe social, e não como cidadãos do Estado.

Como o capitalismo é um sistema explorador, que resulta em vastas desigualdades de poder, alguns podem ganhar e outros perder. Portanto, as sociedades capitalistas são necessariamente divididas e definidas pela luta de classes. De fato, no Manifesto Comunista Marx e Engels (1962: 34) chegam ao ponto de afirmar que "a história de toda a sociedade até então existente é a história das lutas de classes". Essa suposição forma o contexto da teoria do estado marxista.

Para Marx, o Estado é, em última análise, um servo dos interesses dominantes na sociedade civil, por mais que pareça ter interesses próprios ou possa parecer servir aos "interesses universais" da sociedade. A forma particular que o estado assume historicamente é determinada em última análise pelo modo de produção predominante.

No entanto, Marx argumenta que somente com o desenvolvimento do capitalismo a sociedade civil pode evoluir completamente. Nesse estágio da história, as discrepâncias entre a cidadania igualitária do Estado e as desigualdades entre classes sociais tornam-se agudas. A crescente transparência das contradições do Estado assegura que a luta de classes entre o proletariado e a burguesia é inevitável.

Quando isso é resolvido no interesse do proletariado, o Estado se tornará redundante e a sociedade civil transcendida. Isso ocorre porque o estado é explicado em termos de classe. As classes dominantes, que controlam os meios de produção, usam o Estado como um instrumento para reprimir a classe trabalhadora.

Uma vez que a classe desaparece sob o comunismo, o estado também deve. Em um mundo pós-capitalista, as divisões da sociedade civil são substituídas por uma sociedade comunista, coletivista, onde a propriedade será propriedade da comunidade e todos os indivíduos serão igualmente empoderados.

O marxismo destaca importantes tensões na relação do estado com a sociedade civil, que contrastam fortemente com a visão otimista dos liberais. Todos os marxistas apontam como as estruturas de poder dentro da sociedade civil, baseadas em divisões de classe enraizadas na propriedade, impedem o desenvolvimento do potencial criativo de todos os seres humanos.

Essas desigualdades tornam qualquer igualdade formal que os indivíduos têm como cidadãos impotentes, uma vez que tal igualdade política é divorciada das necessidades cotidianas das pessoas. Os marxistas rejeitam o individualismo abstrato do liberalismo e, em vez disso, compreendem o comportamento humano em seu contexto social, pelo qual as ações das pessoas são moldadas, se não determinadas, por seu lugar no sistema econômico. O Estado não pode deixar de refletir essas divisões de classe: deve promovê-las ou tentar reconciliá-las nos interesses da continuidade do capitalismo a longo prazo.

Há indubitável percepção na ideia de que o estado não pode ser separado das divisões de classe da sociedade civil e que as considerações econômicas são centrais para um estado de sucesso. Mas esses insights poderiam ser aceitos sem abraçar uma estrutura marxista.

No entanto, tem sido tarefa da teoria do estado marxista dar corpo aos detalhes da relação do Estado com a sociedade civil de uma forma consistente com a própria teoria holística da história humana de Marx, vista como um caminho inevitável para uma sociedade sem estado. e que é conduzido ao longo desse caminho por conflito de classes. Para continuar a metáfora itinerante, os marxistas enfrentam o problema que Marx não conseguiu identificar, onde exatamente a instituição do Estado está no mapa conceitual que leva ao comunismo!

Por causa de sua relativa negligência do Estado, Marx deixou um legado distintamente confuso para seus muitos seguidores. Pelo menos duas teorias separadas do estado são normalmente identificadas nos escritos de Marx (Held, 1996: 129). O primeiro deles, que pode ser encontrado em sua forma mais clara no Manifesto Comunista, define o estado como um instrumento que é controlado diretamente pela classe dominante para coagir a classe sem propriedade: 'o executivo do estado moderno é apenas um comitê para administrar os negócios de toda a burguesia ”(Marx e Engels, 1962: 43-4).

Essa teoria teve considerável influência sobre os revolucionários que tentaram derrubar o capitalismo. Assim, para Lênin, o líder da Revolução Russa em 1917, a luta pelo controle do Estado tornou-se uma meta pela qual os comunistas deveriam se empenhar. A concentração de poder militar do Estado poderia, nas mãos dos representantes do proletariado, ser usada para erradicar os remanescentes da sociedade burguesa. Isto implicou primeiro capturar e depois "esmagar" o estado capitalista e construir um estado socialista em seu lugar.

Lenin, e depois Stalin, ampliaram a frase de Marx e Engels, "a ditadura do proletariado" em uma lógica duvidosa para o estado cada vez mais centralizado que surgiu na Rússia após a revolução de 1917. Lenin (1965: 41) defende a necessidade de substituir uma forma de democracia parcial para outra, de modo que no rescaldo da revolução "o Estado deve ser inevitavelmente um Estado que é democrático de uma nova maneira (para o proletariado e a propriedade menos em geral) e ditatorial de uma nova maneira (contra o burguesia)'.

A segunda teoria do estado identificada na obra de Marx pode ser encontrada em seus escritos históricos sobre a França. No décimo oitavo Brumário, no qual Marx examina o reinado de Luís Napoleão em meados do século XIX, o Estado é visto como tendo uma relação mais complicada com a sociedade civil:

Sob a monarquia absoluta, durante a primeira revolução, sob Napoleão, a burocracia era apenas o meio de preparar o domínio de classe da burguesia. Sob a restauração, sob Louis Philippe, sob a república parlamentar, era o instrumento do governo de classe, por mais que se esforçasse por poder próprio. Somente sob o segundo Bonaparte o estado parece ter se tornado completamente independente. (Marx e Engels, 1962: 333)

Esta breve passagem destaca as dificuldades em identificar uma teoria consistente do estado na obra de Marx. Nos três casos históricos que Marx cita, temos três diferentes interpretações do papel do Estado, cada uma delas desenvolvida por marxistas subsequentes. Em primeiro lugar, Marx refere-se aos motivos aparentemente políticos de Napoleão Bonaparte em sua construção do poder do Estado francês como sendo, de fato, a longo prazo, os interesses da burguesia.

Essa é essencialmente uma teoria funcionalista e determinista, em que o Estado é visto como um mero agente para o desenvolvimento do capitalismo. Uma versão dessa posição foi adotada por escritores como Poulantzas (1978).

Segundo, sob Louis Philippe, o estado aparece como um instrumento direto da classe capitalista e esta interpretação é consistente com a teoria delineada no Manifesto Comunista e desenvolvida por teóricos como Miliband (1968). Finalmente, Marx parece permitir a possibilidade de que, sob certas circunstâncias, o estado possa ter completa independência da classe capitalista.

Marx evita esta ousada declaração de autonomia do Estado algumas frases depois, quando escreve que “o poder do Estado não está suspenso no ar. Bonaparte representa uma classe e a classe mais numerosa da sociedade francesa, os pequenos camponeses (Marx e Engels, 1962: 333).

Entretanto, escritores como Jessop (1990) consideraram seriamente a capacidade do Estado de agir autonomamente, de maneiras que não podem ser reduzidas a imperativos econômicos. É a falta de clareza de Marx em relação ao Estado que gerou uma literatura enorme e muitas vezes impenetrável que, sem dúvida, faz pouco progresso em tornar clara a relação entre Estado e sociedade civil.

Como observa Carnoy (1984: 3-9), o período do pós-guerra tem visto um interesse crescente do estado pelos marxistas.

Primeiro, isso é devido ao enorme crescimento das funções e capacidades do Estado nas sociedades capitalistas.

Segundo, os marxistas procuraram corrigir a suposta distorção dos escritos de Marx pelos partidos comunistas que haviam chegado ao poder na Europa Oriental e na China e cujo governo se apoiava em uma máquina estatal altamente coercitiva e centralizada.

Grande parte da discussão mais interessante dos marxistas sobre o Estado foi inspirada no trabalho do comunista italiano Gramsci (1971). Isso porque a ênfase de Gramsci no Estado como um importante local de luta política parece permitir um alto nível de autonomia em relação à estrutura econômica, que Marx via como determinante da forma da sociedade civil.

Isso é atraente para os marxistas que desejam evitar a acusação de economismo, isto é, a visão de que o marxismo reduz toda a ação humana a atender às exigências da base econômica sobre a qual todas as sociedades supostamente descansam.

Gramsci certamente introduz algumas variações conceituais interessantes no trabalho de Marx. Em particular, sua teoria da hegemonia destaca a importância da manipulação ideológica da classe dominante sobre a classe trabalhadora. A hegemonia é um tipo de poder comunicativo que se refere a uma justificativa ideológica para as desigualdades do capitalismo.

Essa hegemonia opera por meio de instituições como a mídia, a igreja e os partidos políticos. No entanto, embora a hegemonia capitalista permeie tanto o Estado quanto a sociedade civil, ela nunca é completa, permitindo a construção de uma hegemonia alternativa.

Assim, Gramsci vê o uso do poder comunicativo, bem como as lutas de classes materiais, como centrais para a derrubada do capitalismo. Daí, ele enfatiza o papel dos intelectuais na construção de um "projeto hegemônico" igualitário e alternativo à ideologia dominante do capitalismo, com sua ênfase na exploração egoísta dos muitos por poucos.

Isso aponta para a possibilidade de uma transição política para o comunismo na qual os mecanismos da democracia liberal são utilizados pela classe trabalhadora para transformar e, eventualmente, transcender o Estado. Gramsci refere-se a esse tipo de estratégia como uma "guerra de posição", que ele contrasta com uma "guerra de manobra" que enfatiza um ataque violento ao capitalismo (Gramsci, 1971: 238-9).

Na teoria de Gramsci, o estado não é um objeto a ser capturado, mas é em si mesmo uma arena para a luta (Thomas, 1994: 143). Existem vários problemas com a posição de Gramsci, no entanto, que destacam dilemas mais fundamentais no coração do marxismo.

Primeiro, Gramsci é inconsistente em suas definições do estado e da sociedade civil. Às vezes eles são idênticos, em outras ocasiões eles se opõem, e em algumas passagens o estado é visto como abrangendo a sociedade civil, sendo distinto da sociedade civil somente através de seu monopólio da força física (Gramsci, 1971).

Em segundo lugar, enquanto permite espaço para uma consideração mais sutil da relação entre política e economia, Gramsci aceita que os fatores econômicos são primários na determinação dos resultados políticos. Isso levanta a questão de se o economicismo, por mais cuidadosamente que seja formulado, é essencial para todos os relatos marxistas do estado e da relação da sociedade civil. Os marxistas recentes tentaram resolver essa questão. O trabalho de Poulantzas fornece o melhor exemplo.

Poulantzas (1978) toma a noção de Gramsci do Estado como um local para a luta de classes estratégica e estende isso para uma teoria geral da autonomia relativa do Estado em relação à sociedade civil. Escrevendo no contexto de um papel enormemente aumentado para o Estado na administração das tensões do capitalismo, Poulantzas tenta mostrar como a aparente separação do Estado do controle direto dos capitalistas é funcional às necessidades do capitalismo.

Para Poulantzas, os imperativos do capitalismo exercem um controle indireto sobre o Estado. A atual posição de classe do pessoal do estado é, portanto, relativamente sem importância. Isso se deve ao fato de que o estado depende do crescimento econômico para sua sobrevivência. O Estado, portanto, desempenha um papel central na naturalização das desigualdades do capitalismo como inevitável e desejável.

As necessidades das pessoas são retratadas pelos órgãos do Estado como sendo idênticas às necessidades do capitalismo. O estado capitalista assume muitas formas, como o fascista ou o social-democrata, e essa forma depende de inúmeros fatores políticos e sociais. No entanto, devido às restrições estruturais do capitalismo, o Estado é sempre levado de volta à sua função primordial de manter as condições para a acumulação capitalista. Isso inclui a manutenção da estabilidade social, o fornecimento de apoio de infra-estrutura e a manutenção de um mercado de trabalho adequado.

Poulantzas atrai a crítica legítima de que sua teoria é determinista e funcionalista. O estado é meramente uma instituição que é funcional para o capitalismo em seu papel de reconciliador do conflito de classes. Por essa razão, um colega marxista, Miliband, acusou Poulantzas de uma espécie de "superdeterminismo estrutural", no qual a agência dos indivíduos se torna irrelevante (Miliband, 1970: 57).

Se este é o caso, argumenta Miliband, é difícil afirmar que existe uma diferença real entre um estado fascista e social-democrata. A superficialidade de tal análise ilustra, para Miliband, a falsidade da posição de Poulantzas. É, portanto, duvidoso quanto de um avanço real Poulantzas faz na segunda teoria do Estado de Marx.

Marx, como Poulantzas, permite que a classe capitalista às vezes desista do poder político para preservar sua capacidade de acumular riqueza: "para salvar sua bolsa, perder a coroa e a espada". isto é, para salvaguardar, ela deve, ao mesmo tempo, estar pendurada sobre sua cabeça como a espada de Dâmocles ”(Marx e Engels, 1962: 288).

As contradições que permeiam toda a obra de Marx sobre o Estado, e que o tratamento mais extensivo de Poulantzas só serve para ressaltar, são bem ilustradas nessa citação. A primeira parte da citação sugere que a acumulação capitalista ocorrerá quem quer que governe o estado; a segunda parte sugere que os controladores do Estado têm pelo menos o potencial de usar o poder coercitivo do Estado contra os interesses burgueses.

Esse problema é expresso também no argumento contraditório de Poulantzas de que, por um lado, o Estado é estruturado pelas necessidades do capitalismo, mas, por outro lado, o Estado é, ele próprio, um local de luta de classes. O problema para Poulantzas, como para Marx, é explicar como esses dois pontos mutuamente exclusivos podem ser reconciliados em uma teoria convincente da transição para o comunismo (Carnoy, 1984: 107).

A ambiguidade de Marx sobre o papel do Estado e sua incapacidade de gerar uma teoria convincente de transição para o comunismo levou Lenin a perceber o estado como um objeto a ser capturado pelo partido bolchevique que brandiria a "espada de Dâmocles" no interesses da classe trabalhadora.

Apesar da advertência de Marx de que "a classe trabalhadora não pode simplesmente apoderar-se do maquinário estatal pronto e manejá-lo para seus próprios propósitos" (Marx e Engels, 1962: 516), a interpretação de Lênin do Estado não está desconectada das próprias teorias de Marx. Embora pelo menos duas versões do papel do estado possam ser identificadas nos escritos de Marx, estas não são posições distintas e freqüentemente se sobrepõem.

Isso permite a interpretação plausível de que não apenas o estado pode servir para manter o capitalismo, mas também pode ser usado, em certas circunstâncias, como um meio de transcender o capitalismo.

Esses problemas teóricos são, em grande parte, devidos ao fracasso entre os marxistas em identificar o Estado como um ator em si mesmo, com recursos e imperativos próprios, que não podem ser reduzidos a fatores econômicos. Isso não é negar a relação interdependente que o Estado deve necessariamente ter com a sociedade civil, mas é dar mais atenção a questões como o potencial do Estado para ser tão repressivo quanto a desigualdade econômica.

Tampouco esse potencial repressivo do Estado pode ser entendido puramente em termos de classe. Ou seja, o estado não é um órgão opressivo de uma classe, mas é um órgão opressivo per se. Esse é um ponto enfatizado por críticos feministas e teóricos da etnia que argumentam que o Estado desempenha um papel importante tanto na reflexão quanto na promoção de desigualdades na sociedade civil entre homens e mulheres e entre diferentes grupos étnicos.

O resultado dos paradoxos da teoria do estado marxista tem sido assustadoramente ilustrado pelo uso repressivo do Estado na China e na União Soviética. Se aceitarmos a unidade essencial da teoria e da prática, expressa na noção marxista de "práxis", então a teoria marxista deve ser criticamente reavaliada à luz da experiência histórica dos regimes comunistas atuais.

Isso não é disputar o poder da crítica marxista do modelo liberal idealizado delineado, mas exige que questionemos a utilidade de qualquer teoria que reduza a prática da política a fatores econômicos.

Sem uma teoria desenvolvida de governança, distinta de sua crítica ao capitalismo, Marx lançou as sementes para estados altamente repressivos nos quais um objetivo chave era o fim da política, que é implicitamente entendido por Marx (particularmente em sua obra posterior) como relevante apenas para sociedades baseadas em classes. Os problemas de governança não desapareceriam, mesmo na sociedade sem estado desejada por Marx. Nem nos estados autoritários que reivindicavam a legitimidade dos escritos de Marx.